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DESTAQUES

Cinzeiro Partido

O homem estava triste. Sentado na poltrona de couro velho, ele jogava a bituca do cigarro no cinzeiro, logo depois de amassar a ponta com o dedo.

O telefone toca. Do escuro, seu braço se estica, e ele tira do gancho o velho telefone de fio. Era um homem fora de sua época, se mantinha preso à velharias. Era um velho amigo no telefone que o chamava pra beber. O nordestino — não se sabe se paraíba — com sotaque carregado, dizia:

— Rapaz, venha! Tô aqui naquele barzinho com os outros cabras.

O homem, tentando apagar a solidão em sua voz, simplesmente responde que “agora não”, e desliga o telefone, sem mais nem menos.

Volta a se lamentar no escuro. Se arrependera de ter negado o convite do amigo; talvez beber um ou dois copos lhe fosse fazer bem. Mesmo assim, não mudou de ideia, continuou sozinho, sentado no escuro daquela sala, enquanto acendia mais um cigarro. O cinzeiro de cristal, já cheio deles, não suportaria mais esse último.

O homem pegou o cinzeiro, abriu a janela e jogou as bitucas desgastadas por ela. Talvez algum passante fosse ser apedrejado com os cigarros e cinzas que foram jogados de uma janela do décimo andar, mas isso não era problema dele. Há muito deixara de se preocupar com regras de cidadania e boa vizinhança.

O telefone toca mais uma outra vez. Ele o tira do ganho, era sua mulher:

— Oi, meu bem, não volta para casa hoje? — perguntou a moça ao telefone.

Sua resposta foi a mesma dada ao amigo: “agora não”. E o colocou de volta no gancho, sem nem dar tchau.

A mulher pensava que ele a traía, algo que o deixava indignado: sempre fora fiel! Entretanto, para cumprir as expectativas da esposa, marcara com a amante de se encontrar em seu escritório, onde estava. A campainha toca: era a amante.

— Ei, querido, cheguei! Abre a porta!

A resposta foi a mesma das vezes anteriores, mas muito mais irritado:

“Agora não, vá embora!”; e jogou o cinzeiro na porta com violência, partindo- o em dezenas de pedacinhos de cristais ao chocar-se contra a superfície de

madeira.

A amante foi embora correndo. A pobre nem sabia que era amante, pensava ser namorada; assim como sua esposa um dia pensara ser a única. Ele preferia

pensar que era, que nunca amara a nenhuma das outras, que a esposa era a dona de seu coração, junto dos três filhos que fizeram.

Isabela era a mais velha, já iria se formar esse ano no ensino médio. Carlos, o do meio, ainda corria pelos corredores da escola, aproveitando seu sétimo ano de ensino fundamental. Marcela, a mais nova, tão amada pelo pai, não tinha tempo de ir à escola: estava ocupada fazendo quimio no INCA.

De repente, o homem ouve um barulho, como um rojão. Ele se assusta, e uma mão se ergue da escuridão atrás dele para tocar seu ombro:

— Sérgio, vamos embora. — Ordenou a voz, como o uivo fantasmagórico dos ventos.

— Sim, agora sim, graças a Deus!

E lá foi Sérgio, de mãos dadas com aquele vulto, se perdendo no escuro do quarto. Deixou para trás o amigo, a esposa, a amante, a Isabela, o Carlos e a Marcela. Deixara também o cinzeiro partido, um cigarro aceso e um revólver com o cano quente.

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