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DESTAQUES

Vira-lata caramelo


Foto de Engin Akyurt no Pexels

Fabiano era um homem simples. Simples, para não dizer que era pobre. Era um catador de lixo, iletrado e que não tinha qualquer que fosse o documento para provar que existia e, tampouco, que se chamava Fabiano.


Todos os dias, saía de manhã do seu barracão, numa viela da Mangueirinha, e andava pela rua catando tudo que fosse lixo. Às vezes, comia pão com manteiga no café da manhã, mas sempre achava mais justo deixar que sua filha, Larissa, e Lurdes, sua mulher, comessem o quanto quisessem. Todo mês, os donos do morro passam em sua casa e lhe dão cestas básicas. Fabiano não era bandido, não. Era trabalhador e se negava a roubar e não havia de apoiar o tráfico da região. Mas não poderia, também, se negar a aceitar aquela comida e deixar de comer.


Tinha ele orgulho de sua menina. Ela ia, de manhã cedinho com a mãe, para trabalhar na casa d’um homem rico lá do centro. A filha do patrão era professora e a ensinava a ler e fazer contas. Larissa tinha só seis anos e não entendia das coisas, mas sabia como ler e escrever, era dedicada e sabia mais que seu velho pai. Mas Fabiano não haveria de admitir isso: quando a filha lhe pedia ajuda nas lições que a filha do patrão passava, ele fingia ler alguma coisa e, dando-lhe a explicação de que estava muito cansado, ia se deitar. Ela tinha de pensar que ele era esperto, que era inteligente. Sua filha havia de ter alguém em quem se espelhar e, já que dona Lurdes também era analfabeta e dizia ser besteira esse lance de estudo, seria ele o seu reflexo.


Era época de eleição e passava, de hora em hora, o carro de som do Seu Prefeito anunciando sua recandidatura. Fabiano não sabia o que ele havia feito nesses anos que ficara no poder, mas ao menos era conhecido e já sabia seu número de cor: se pudesse, votaria nele, mas para isso, precisaria tirar um título. Que diabo era um título ele não sabia...


O outro candidato, diziam, era mais amigo do povo. Mas que diferença faria? Os últimos cinco o eram e, depois de eleitos, pouco se sabia de seu paradeiro. Seu amigo, Antônio, era padeiro e haveria de se candidatar a deputado. Fabiano pensava ser tolice.


“Como há de ser deputado se nem terno tem?”, ele indagava ao colega.


“Lá eles dão”, respondia Antônio.


“E com que dinheiro eles lhe hão de pagar um terno?”


“Com o nosso, ora!”


Fabiano não entendia como saíra de seu bolso o dinheiro para o terno de Antônio: mal o tinha para comer! Mas, de toda forma, seu amigo se enganava. Nem imposto Fabiano pagava: seu barracão não era registrado, tampouco, novamente, era ele. Fabiano se perguntou se Antônio também sumiria depois de eleito... Eles entram naquele tal Prédio da Câmara e somem. Sabe-se lá o que fazem com eles por lá.

Certo dia, Fabiano andava pelas ruas catando garrafas, caixas, latinhas e as jogava no carrinho, que puxava por sua lomba. Era como um cavalo puxando a charrete de um homem rico: a charrete era o carro e o homem rico, o lixo. Isso lhe fazia muito sentido. O lixo lhe dava alimento, assim como o homem rico dava cenoura ao cavalo. A diferença, entretanto, era que o lixo não seria tão perfumado e, então, chegou a conclusão que, se pudesse escolher entre os dois, escolheria o rico, mesmo que esse lhe desse chibatadas como nos tempos de seu velho bisavô Benedito.


Ele haveria de ir, após ter catado coisa suficiente, até a Favela do Lixão, bem longe de onde morava, para vender o que arrecadara. Lá, encontraria tantos outros como ele, vendendo o lixo que conseguiram. Um se chamava João, outro José, outro Raimundo... Mas não importava: não havia registro de sua existência e, mesmo que trocassem os nomes entre si, ninguém haveria de perceber. Para os homens do Centro, eles eram todos iguais, todos catadores, cobertos de sujeira, cobertos de lixo.


Aquelas palavras bonitas do Seu Prefeito sobre comida, saúde e trabalho eram coisa que não existia por ali. Não, não existiam. Era tudo só fome e miséria e tudo que Fabiano se perguntava era se aquela tal de Constituição era de comer.


Por aquelas bandas, passava sempre um cachorro magro, feio e sujo, cheio de sarna pelo corpo, seu nome era Pituco. Era um vira-lata caramelo, tão idêntico aos de sua espécie como era ele. Fabiano gostava do bicho, se identificava. Pensava que, como Pituco, não tinha nome de verdade, apenas uma palavra pela qual as pessoas o chamavam. Pituco também não lia, nem escrevia, e as palavras que soltava despertavam tanta atenção quanto às dele. Além disso, ambos eram parecidos quanto ao labor: todos dois tiravam do lixo o proveito de seu alimento.


Como se identificava com Pituco! Se um dia morresse numa viela qualquer, pensava, haveriam de ter outros, idênticos a ele, para repor seu lugar. Ninguém haveria de sentir sua falta, disso tinha certeza: a saudade é apenas para aqueles que existem.




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